Para Vilém Flusser:o que uma imagem tem em comum com um milho trangênico?
Quando ainda estava na cadeia, o filósofo italiano, Antonio Gramsci percebeu algo incrível: o vento contra a revolução sopraria do outro lado do atlântico, dos EUA, e qualquer movimento operário teria que encarar daqui para a frente o “americanismo”, que para ele era a “corporação”, corpo místico que mistura trabalho organizado (taylorismo), controle das práticas sexuais e familiares pela ideologia do lazer e, o principal, um novo contrato social, jurídico, que permitiu dissolver as lutas de classe. Resumindo o resumo, o operário que antes se revoltava, agora tinha um status jurídico que lhe permitia comprar umas ações da empresa onde trabalhava e se realizava no club da empresa. Além disso tinha um crachá e uma carreira, que fazia dos salários uma diferença entre os operários, e não uma bandeira de reivindicação comum.
O movimento corporativo existe, e em alguns aspectos, as ações jurídicas criaram condições formais, que podem ser confirmadas pela transformação técnico-econômica em larga escala, já que os operários não podem mais se opor, nem podem lutar para tornarem-se, eles mesmos, porta-estandartes. A organização corporativa pode se configurar pela transformação, mas a pergunta é: teremos uma daquelas astúcias da providência, próprias de Vico, pelas quais os homens, sem se proporem a isso e sem desejar, obedecem aos imperativos da história? Por enquanto, somos levados a duvidar. O elemento negativo da polícia
econômica prevaleceu até agora sobre o elemento positivo que advém da exigência de uma nova política econômica que, modernizando-a renova a estrutura econômico-social da nação, principalmente no que diz respeito aos quadros do velho industrialismo. A forma jurídica possível é uma das condições, não a única condição e nem a mais importante. É apenas a mais importante das condições imediatas. A americanização requer um dado ambiente, uma determinada estrutura social — ou a vontade decidida de criá-la — e um certo tipo de Estado. O Estado é o liberal, não como o liberalismo alfandegário ou da liberdade política efetiva, mas no sentido mais fundamental da livre-iniciativa e do individualismo econômico que colaboram com meios próprios, como sociedade civil, para o próprio desenvolvimento histórico, no regime da concentração industrial e do monopólio. [Fonte: Gramsci, Americanismo e fordismo, Hedra]
É este o capitalismo em que vivemos hoje, em que a dona de casa americana e o fundo de pensão dos funcionários são “donos virtuais”. É o sistema que vemos em crise, apesar de a esquerda querer ressucitar a luta de classes do século XIX. E ao meu ver é exatamente no aspecto jurídico das corporações que o software livre bateu. Um movimento simples, um novo contrato social, baseado não no direito autoral, mas sim no valor do trabalho de cada um e na filia (para não usar a palavra solidariedade, que, parece sempre uma coisa da igreja). O pulo do gato foi dado por Richard Stallman, que criou uma licença de algumas páginas chamada GPL, que pode ser resumida assim:
- A liberdade de executar o programa, para qualquer propósito (liberdade nº 0)
- A liberdade de estudar como o programa funciona e adaptá-lo para as suas necessidades (liberdade nº 1). O acesso ao código-fonte é um pré-requisito para esta liberdade.
- A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar ao seu próximo (liberdade nº 2).
- A liberdade de aperfeiçoar o programa, e liberar os seus aperfeiçoamentos, de modo que toda a comunidade se beneficie deles (liberdade nº 3). O acesso ao código-fonte é um pré-requisito para esta liberdade.
A corporação ficou de fora, ou, ao menos, de lado. A corporação, que explora a venda de royalties de tecnologia e não a sua aplicação direta (vide… China), passou a presenciar o desenvolvimento exponencial de códigos e a diversificação do seu uso de forma inesperada. Este mero acordo jurídico, que transcende as leis nacionais, e que é baseado em liberdades, acabará tomando outros “mercados”, e os transformará em nervos sociais, como já é a wikipédia, por exemplo. Mas as mudanças vão além dos produtos.
Há de fato uma intervenção no conceito de autoria, na valorização do trabalho e no limite das empresas, e consequentemente, na função do Estado, que nos últimos tempos se tornou um portal (menor) de corporações.
(The Code, 2001. Boa introdução ao mundo dos “nerds” políticos, infelizmente parte em inglês, chinês, finlandês!)
A valorização do Hacker
O filósofo Vilém Flusser, que só não foi brasileiro porque o Brasil não quis, escreveu um bom livro chamado Filosofia da caixa preta, em que fala da criação das imagens por aparelhos cuja lógica do funcionamento não nos pertence. Se encararmos a produção de códigos e o ocultamento sucessivo e infinito deles em caixas pretas, é óbvio que entenderemos a profundidade da mudança que o software livre procura, não só na economia e no trabalho, mas na cultura.
Pois há algo de comum entre o aparelho fotográfico industrializado e o código operado por botões virtuais (destinado aos usuários e escrito por especialistas), mas também entre uma patende de um remédio ou, pior, a fórmula química de um trangênico qualquer, capaz de solapar com a produção agrícola de um país em 5 anos.
O hacker é quem se propõe a abrir o código, e ao invés de roubá-lo, como se pensa geralmente, pretende escrevê-lo em conjunto com uma comunidade. Assim, o hacker não propõe a reprodução ilícita de uma mercadoria que já existe, mas a criação de um novo circuito, que já não pode ser reconhecido como “mercado”…
Questão de pano pra manga.